domingo, 20 de agosto de 2023

As eleições argentinas e o fenômeno Milei



No último domingo (13) ocorreram as eleições primárias argentinas, que definiram pelo voto popular direto os candidatos para as eleições gerais que acontecerão em outubro deste ano. 

As “PASO”, como são chamadas, são uma fase preliminar obrigatória para os partidos que pretendem disputar o pleito eleitoral. Servem tanto para definir os candidatos de cada partido, quanto para identificar o humor do eleitorado antes das campanhas eleitorais. 

E foi aí que se descortinou a surpresa. Com um resultado avassalador, alcançando quase um terço dos votos, o economista Javier Milei (52), postulante do partido La Libertad Avanza (A Liberdade Avança), criado pelo próprio há pouco mais de dois anos, deixou para trás as principais forças da política argentina desde 2003: o Macrismo do partido Juntos por el Cambio (Juntos pela Mudança), com 28%, e a aliança Peronista-Kirchnerista, representada pelo Unión por la Patria (União pela Pátria), 27%, que governa o país atualmente.

No panorama dos candidatos, o resultado demonstrou uma vitória ainda mais elástica de Milei, pré candidato único a presidente pelo seu partido. O “Liberal libertário” alcançou 30,04%, ante 21,4% de Sergio Massa (Unión por la Patria) e 16,98% de Patricia Bullrich (Juntos por el Cambio).



O contexto global

Desde a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos em 2016, uma nova face da direita surgiu com força no mundo ocidental. O espectro de extrema direita, por décadas ofuscado no nosso cenário político eleitoral, emergiu lastreado numa tese integrada às mídias sociais, ao neoliberalismo econômico e ao conservadorismo nos costumes. 

Trump, através do Partido Republicano, chegou à presidência dos EUA impondo medidas protecionistas, construção do muro na fronteira com o México, abandono de acordos climáticos e nucleares, expansão da exploração de combustíveis fósseis e principalmente a pauta negacionista. Ataque a ciência, flerte com opiniões religiosas fundamentalistas, xenofobia e racismo, são características marcantes do político estadunidense e de seus seguidores no ocidente, como Jair Bolsonaro, eleito presidente do Brasil em 2018.

Esta nova extrema direita super ideologizada e reacionária, ao eleger o presidente do país mais poderoso do mundo, criou uma avalanche pela Europa e América Latina e fez surgir nos estados, personagens políticos identificados como “trumps nacionais”. O clube dos extremistas de direita hospeda políticos como Viktor Orban na Hungria, Georgia Meloni que ressuscitou o fascismo de Benito Mussolini na Itália, Santiago Abascal, lider do VOX franquista na Espanha, Rodolfo Hernández na Colombia, Nayib Bukele em El Salvador, Bolsonaro no Brasil e o mais novo integrante, Javier Milei na Argentina.


Quem é Milei?

Javier Milei nasceu em 1970 na capital Buenos Aires, foi goleiro do Chacaritas Juniors e tocou numa banda de rock cover dos Rolling Stones na adolescência. É formado em economia pela Universidad de Belgrano, professor e político outsider, trabalhou para bancos, consultorias do mercado financeiro e assessorou políticos na área econômica.

Se define como minarquista (filosofia que defende o estado mínimo) e ostenta - além dos cinco cães de raça Mastin inglês, com quem vive sozinho numa mansão no condomínio Valle Claro, zona norte porteña -  o título de “forasteiro político” e o slogan “la casta tiene miedo” (a casta tem medo), marcas que o credenciam para executar com eficácia a tarefa de criminalizar a política e os políticos. Outra característica marcante do trumpismo.

Entre suas propostas estão o fechamento do Banco Central Argentino, dolarização da economia, liberalização dos mercados de armas e de órgãos humanos, privatização das penitenciárias, extinção de ministérios como o da educação e da saúde, finalizar as multas rescisórias oriundas de contratos de trabalho, apoiar o mercado de criptomoedas e alçar a Argentina a condição de maior potência mundial em 35 anos.


O contexto interno de crise econômica e descrença na política

A inflação chegou a 115% no acumulado dos últimos 12 meses, perdendo apenas para a Venezuela, que atingiu catastróficos 440% no mesmo período. A taxa de câmbio não para de subir. Em junho quando, 1 Real era vendido por 90 Pesos, três meses depois vale 145 Pesos no mercado paralelo e nas ruas das principais cidades do país, através dos “arbolitos” (operadores clandestinos de câmbio). 

Para agravar, o atual presidente Alberto Fernandez optou em submeter o país às regras monetárias impostas pelo Fundo Monetário Internacional - FMI, credor da dívida contraída em 2018 pelo ex-presidente Mauricio Macri, o que praticamente vem anulando os potenciais efeitos positivos do incrível crescimento do PIB nacional nos últimos dois anos, em média de 5%.

A sociedade argentina cristalizou a cultura de poupar em dólares, principalmente após a crise interna de 2001 e o calote dos bancos, desde as grandes empresas de commodities agropecuárias, que armazenam seus ativos de exportação em bancos internacionais, até o cidadão comum, que troca por dólar a sobra do salário e guarda dentro de casa. 

Em contrapartida, o governo fixa a taxa de câmbio oficial, eleva a taxa de juros (atualmente em 118%), limita a venda de dólares pelos bancos que operam no país e perde popularidade, a ponto do atual presidente se retirar da disputa pela reeleição e apoiar a candidatura do seu ministro da economia, Massa, que ensaia uma polarização com Milei, em paralelo a tentativa de reconquistar a confiança do eleitorado e encampar o sentimento de esperança perdido.


A relação de Milei com Bolsonaro

Além de pertencerem ao mesmo clube e dos afagos trocados, como parte do plano homogeneizador da extrema direita populista, existem diferenças.

A primeira é de ordem profissional, enquanto Bolsonaro tem uma carreira política de mais de 30 anos, Milei sempre atuou na iniciativa privada, é debutante da política e somente em 2021 se candidatou e foi eleito deputado nacional por Buenos Aires;

A segunda é sobre religião, Bolsonaro surfa no protestantismo, já Milei ignora o nicho evangélico que reflete apenas menos de 15% dos argentinos; 

A terceira diz respeito aos militares, origem ideológica de Bolsonaro e peça-chave na composição de seu governo, enquanto Milei já criticou a tortura e a última ditadura argentina (1976-83), uma das mais violentas do continente americano, ainda que sua vice a deputada Victoria Villarruel seja neta de militar e costuma questionar o legado nefasto que provocou mais de 30 mil mortos e desaparecidos; e

A quarta diferença faz referência ao conservadorismo. Na medida em que Bolsonaro é um conservador dos costumes que acena para os mercados, Milei é um anarcocapitalista representante dos mercados que acena eleitoralmente para os conservadores.



Rafael Muricy nasceu em Caém/BA, é pesquisador na área de Relações Internacionais, Economia Sustentável e Governança, ex Secretário Municipal de Caém.

segunda-feira, 10 de julho de 2023

O que tem aí pra mim?


Já pela terceira parte da biografia póstuma do grande geógrafo baiano Milton Santos, nascido em Alcobaça, município pequeno e interiorano da Bahia, como Caém, escrita pelo jornalista Waldomiro Santos Junior, encontrei o conceito resumido do termo cultura: “manifestação coletiva que reúne heranças do passado, modos de ser do presente e aspirações, isto é, o delineamento do futuro desejado.” A síntese, de tão clara e objetiva, o que diz muito sobre a genialidade do homem que a cunhou, desvenda a característica tridimensional da cultura, bem como a integração necessária do tripé que a constitui. Em outras palavras, sem passado não há cultura; sem futuro, tampouco.


Milton envereda, na sequência da obra supracitada, para as críticas consistentes ao modelo de globalização vigente que o mesmo chamou de perversa, na medida em que os países desenvolvidos e mentores desta globalização impõem sistematicamente ao mundo, através da indústria cultural, um padrão internacional de consumo que corrompe de fora para dentro as pessoas e as tradições culturais locais.


Este texto não vai por aí. Pretende apenas se valer do rico conceito de cultura, sustentado pelo tripé - passado, presente e futuro - para fazer breves reflexões sobre a realidade cultural caenense e por que não do território do Piemonte da Diamantina, o qual o município de Caém está inserido. 


É verdade que enormes mudanças se desencadearam numa velocidade brutal nas últimas décadas, principalmente após o final da segunda guerra mundial e o avanço da tecnologia, com o advento da internet e da exploração sem precedentes de petróleo e de minerais pela indústria. Entretanto, muitos países e comunidades ficaram para trás, basicamente pela fragilidade socioeconômica derivada de processos históricos injustos ou por não enxergarem o movimento do tempo e suas grandes transformações. 


Caém, ainda sem ser Caém, nasceu como pequeno aglomerado urbano antes dessa eclosão. O ouro, o manganês, o “emprego” gerado pela construção de uma ferrovia, a demanda comercial gerada pelos próprios ferroviários e suas famílias recém instaladas precariamente e a densidade de água encontrada nos rios e mananciais da região, foram componentes cruciais para o nascimento da nossa comunidade. Daí nossos ancestrais foram chegando e povoando, dando forma, criando novas condições, formulando regras, compartilhando atividades e relacionamentos, produzindo alimentos, desenvolvendo a economia, construindo o ambiente público e, por consequência, constituindo a nossa cultura.


Mais de 100 anos passaram, pouco mais de 60 anos de emancipação e independência política, pleno século XXI, no contexto de um planeta muito habitado, super conectado e bem diferente daquele mundo que praticamente não existe mais. 


E como chegamos até aqui, agora? 


Bem, esta é uma questão ampla e apta a considerar muitas respostas. A justa forma como cada um de nós nos reconhecemos e compreendemos a história, faz nascer o apreço pelo nosso lugar comum no mundo. Leia-se Caém. A  aplicação desta pergunta é a chave para alcançarmos nossas aspirações.


Outra verdade é que temos mais 2 perguntas a fazer; qual o nosso modo de ser? e o que aspiramos?


Estas perguntas não devem ser respondidas somente por mim ou por você, separadamente. Estas perguntas devem ser debatidas com seriedade e integridade pelo maior número e a maior diversidade de caenenses possíveis, com o objetivo de abrir as portas para o futuro que já chegou. 


Podemos restaurar nossas boas heranças, recuperar nosso patrimônio histórico, cultivar as memórias altivas de caenenses como Belisário Muricy e tantos outros. Podemos promover o encontro, que ainda não aconteceu, da juventude urbana e rural com as suas raízes e origens. Podemos educar e capacitar estes mesmos jovens para manusear cada vez melhor os instrumentos públicos, para aplicar de maneira mais estratégica as políticas, para construir caminhos mais produtivos. 


Para tanto, é preciso reconhecer os problemas e trabalhar na solução. Aposentar a condição de privilegiado ou de pedinte e virar cidadã e cidadão. Exigir ao Estado nossos direitos e cumprir com nossos deveres. Mudar a postura da governança atual. No lugar da passividade do “tem o que aí pra mim?”, que traz como consequências obras aleatórias, superfaturadas inacabadas e muitas vezes elefantes brancos, ou do improviso e da gambiarra, que só precariza o serviço público, adotar o “sabemos o que queremos e pra onde vamos”, numa postura proativa, sustentada por um plano claro e realista de cidade, constituído de programas, projetos e serviços públicos que gerem impactos estruturantes e resultados positivos.



Por Rafael Muricy