segunda-feira, 10 de julho de 2023

O que tem aí pra mim?


Já pela terceira parte da biografia póstuma do grande geógrafo baiano Milton Santos, nascido em Alcobaça, município pequeno e interiorano da Bahia, como Caém, escrita pelo jornalista Waldomiro Santos Junior, encontrei o conceito resumido do termo cultura: “manifestação coletiva que reúne heranças do passado, modos de ser do presente e aspirações, isto é, o delineamento do futuro desejado.” A síntese, de tão clara e objetiva, o que diz muito sobre a genialidade do homem que a cunhou, desvenda a característica tridimensional da cultura, bem como a integração necessária do tripé que a constitui. Em outras palavras, sem passado não há cultura; sem futuro, tampouco.


Milton envereda, na sequência da obra supracitada, para as críticas consistentes ao modelo de globalização vigente que o mesmo chamou de perversa, na medida em que os países desenvolvidos e mentores desta globalização impõem sistematicamente ao mundo, através da indústria cultural, um padrão internacional de consumo que corrompe de fora para dentro as pessoas e as tradições culturais locais.


Este texto não vai por aí. Pretende apenas se valer do rico conceito de cultura, sustentado pelo tripé - passado, presente e futuro - para fazer breves reflexões sobre a realidade cultural caenense e por que não do território do Piemonte da Diamantina, o qual o município de Caém está inserido. 


É verdade que enormes mudanças se desencadearam numa velocidade brutal nas últimas décadas, principalmente após o final da segunda guerra mundial e o avanço da tecnologia, com o advento da internet e da exploração sem precedentes de petróleo e de minerais pela indústria. Entretanto, muitos países e comunidades ficaram para trás, basicamente pela fragilidade socioeconômica derivada de processos históricos injustos ou por não enxergarem o movimento do tempo e suas grandes transformações. 


Caém, ainda sem ser Caém, nasceu como pequeno aglomerado urbano antes dessa eclosão. O ouro, o manganês, o “emprego” gerado pela construção de uma ferrovia, a demanda comercial gerada pelos próprios ferroviários e suas famílias recém instaladas precariamente e a densidade de água encontrada nos rios e mananciais da região, foram componentes cruciais para o nascimento da nossa comunidade. Daí nossos ancestrais foram chegando e povoando, dando forma, criando novas condições, formulando regras, compartilhando atividades e relacionamentos, produzindo alimentos, desenvolvendo a economia, construindo o ambiente público e, por consequência, constituindo a nossa cultura.


Mais de 100 anos passaram, pouco mais de 60 anos de emancipação e independência política, pleno século XXI, no contexto de um planeta muito habitado, super conectado e bem diferente daquele mundo que praticamente não existe mais. 


E como chegamos até aqui, agora? 


Bem, esta é uma questão ampla e apta a considerar muitas respostas. A justa forma como cada um de nós nos reconhecemos e compreendemos a história, faz nascer o apreço pelo nosso lugar comum no mundo. Leia-se Caém. A  aplicação desta pergunta é a chave para alcançarmos nossas aspirações.


Outra verdade é que temos mais 2 perguntas a fazer; qual o nosso modo de ser? e o que aspiramos?


Estas perguntas não devem ser respondidas somente por mim ou por você, separadamente. Estas perguntas devem ser debatidas com seriedade e integridade pelo maior número e a maior diversidade de caenenses possíveis, com o objetivo de abrir as portas para o futuro que já chegou. 


Podemos restaurar nossas boas heranças, recuperar nosso patrimônio histórico, cultivar as memórias altivas de caenenses como Belisário Muricy e tantos outros. Podemos promover o encontro, que ainda não aconteceu, da juventude urbana e rural com as suas raízes e origens. Podemos educar e capacitar estes mesmos jovens para manusear cada vez melhor os instrumentos públicos, para aplicar de maneira mais estratégica as políticas, para construir caminhos mais produtivos. 


Para tanto, é preciso reconhecer os problemas e trabalhar na solução. Aposentar a condição de privilegiado ou de pedinte e virar cidadã e cidadão. Exigir ao Estado nossos direitos e cumprir com nossos deveres. Mudar a postura da governança atual. No lugar da passividade do “tem o que aí pra mim?”, que traz como consequências obras aleatórias, superfaturadas inacabadas e muitas vezes elefantes brancos, ou do improviso e da gambiarra, que só precariza o serviço público, adotar o “sabemos o que queremos e pra onde vamos”, numa postura proativa, sustentada por um plano claro e realista de cidade, constituído de programas, projetos e serviços públicos que gerem impactos estruturantes e resultados positivos.



Por Rafael Muricy